terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Henrique Carvalho Ghidetti

A estrada virou ruína, via-se, seu leito já desaparecia sob um próspero e espesso e perseverante matagal, a pedra britada da base de sustentação do asfalto desagregava-se a olhos vistos, dispersava-se ao sabor de enxurradas e outras forças, descobria por baixo de tudo a terra.

Arrimos cediam, tombavam encostas e em tudo isso parecia externar-se um dissabor, uma cólera da natureza acumulada por anos tolerando aquela fita cinzenta a desenrolar-se ao longo de si, outrora em marcha tão firme, agora carcomida e soterrada, invadida e despojada, removida por seres, coisas e elementos que no passado ela ignorara ao avançar.

Porque ela já fora freqüentada, a estrada, e até muito importante, caminho de grandes poderes por onde transitavam enormes veículos com cargas valiosíssimas, em cujas margens notórias indústrias se plantaram, ao contrário da frondosa mangueira, por exemplo, que agora houve por bem fincar-se justo no meio da pista, transformando-se em ponto de convergência de todo animal que apreciasse a generosidade de sua sombra e o doce de seus frutos.

Antes famílias inteiras, sorridentes em autos reluzentes, cruzavam-na descortinando horizontes de lazeres, seu asfalto testemunhou proeminentes desastres causadores de violentas mortes em manchetes garrafais, desgraças memoráveis, de projeção até internacional, como quando um grande jato usou-a para um pouso forçado sem final feliz.

Mas o passado vive na memória, coitado, suas sobras existem em arquivos, em reproduções nunca fiéis, sempre incompletas, sempre insuficientes, sempre capazes de recuperá-lo só até certo ponto e, pior, o passado não apaga o presente, até pelo contrário, já que toda ascensão traz em si a semente da queda, enquanto certas quedas parecem definitivas, além de somente nas derrocadas costumarmos ver os erros embutidos em nossos velhos acertos. Por isso, lembrar-se do passado, se é que uma estrada está apta a tais tolices, provavelmente não apagaria sentimentos presentes, se é que uma estrada também está apta à tolice de sentir e de querer fugir do que sente, pois uma mente, humana ou rodoviária, pode restaurar imagens, quando muito, não sentimentos, embora eles sejam o que em verdade busquemos para nunca acharmos.

Da memória pode acometer-nos uma saudade ou coisa que tal, jamais a própria emoção vivida, muito menos vívida. Recordação é recordação, terceiro momento sem lugar nem tempo, além do que fomos e do que somos, agravando-se o lembrar quando a ele se recorre para espantar um sofrimento, caso seja uma estrada passível de tanta imbecilidade, pois assim a ferida nunca se cura, trata-se de anêmico sucedâneo, que disfarça o grosso da dor para fazer-nos tolerável viver com uma chaga aberta, elimina a chama mas preserva a brasa, sempre prestes a inflamar ou explodir, tudo a troco de uma desdita menos manifesta, parecendo nossa maior angústia estar na vergonha de saberem que sofremos.

Claro que carece de fundamento supor que uma estrada tem alma. Estradas certamente não choram o abandono de suas placas caídas e enferrujadas, nem a queda do poste que ficou atravessado em sua pista. Isso tudo são criações da mente humana, que projeta nas coisas o que pensa ver em si. Há, porém, uma significativa diferença entre nós, ainda viventes neste mundo, que casualmente flagramos um velho caminho sofrendo seu lento sepultamento, e aqueles que não mais habitam a carne, mas se mantêm presos ao lugar onde dela se desfizeram.

Acidentes fatais costumam deixar vestígios — visagens, lamentos, passos que se ouvem sem que se vejam, — defuntos que não aceitam a própria morte ou que aqui largam pendências inadiáveis, algo comum quando o desenlace é violento, dizem os conhecedores do além. Talvez isso seja o que faz as estradas abandonadas tão tristes, dali já se foram os que portavam esperanças, restaram apenas os desenganados, despossuídos até de um corpo e ainda desprovidos do espetáculo dos vivos em movimento, donos, os mortos, tão-só da via e de seu esquecimento, despojados dos próprios corpos e da vista de corpos alheios vivos, padecendo de uma indigência infinita que os arrasta para um lado e para outro no meio da destruição, sem desejos realizáveis, anulados, apenas contribuindo para que uma tristeza intensa exista, resista e persista triunfante, eis o que resta a quem perdeu o caminho entre aqui e acolá.

Ele era do mundo dos vivos e, não obstante, ainda morava na estrada, tendo-lhe um gostar tamanho que, mesmo ela morta, ainda assim permanecia-lhe fiel. Achava que já vivera muito, mas não o suficiente, como sempre.

Perambulara em demasia durante a juventude, até chegar à via pujante, famosa, desejada. Nela acomodou-se, fez trabalhos variados, foi de quase tudo que se podia ser naqueles quilômetros: abasteceu veículos, trocou-lhes o óleo, consertou-lhes os pneus; serviu mesas nos restaurantes; foi operário em fábricas; dirigiu caminhões. Prestou serviços de uma ponta à outra da pista, léguas e léguas distantes entre si, ficou versado naquele asfalto como ninguém, orientou viajantes, auxiliou policiais, socorreu acidentados e também prejudicou uns poucos desafetos, omitindo-se ou dando informações falsas, não se arrependia.

Ele e ela eram absolutamente íntimos, conheciam-se por dentro e por fora, em qualquer direção do outro para a qual olhassem, mais ela a ele do que ele a ela, pois a vida dele, claro, era bem menor, no tempo e no espaço.

Ele não era um morto, contudo era mais um despossuído, outro que perdera a movimentação, a vida que o alimentava, mais um a não conseguir enxergar maneira diversa de ser. Envelhecera, velhos não gostam de mudar.

Quando a decadência começou, ele, como tantos, apesar de que ele mais que tantos, acreditara na transitoriedade da circunstância, dizia não passar de mal efêmero. O tempo desmentiu cabalmente seu prognóstico — o tráfego diminuía sem parar, os estabelecimentos fechavam um atrás do outro, as cidades cresciam para longe da pista. Ainda assim, ele não se deu por vencido, simplesmente opinou que a recuperação começaria um pouco depois do que supusera, apesar de o declínio tornar-se cada vez mais patente, mais irreversível, prosseguindo até tocar o degrau mais baixo.

Fechou-se o último posto, aplicou-se a última multa, cobrou-se o último pedágio, passou o último carro. Estava encerrado.

Os extremos da rodovia, que ligava duas grandes cidades, foram aproveitados como acessos a novas rotas, tornaram-se civilizadas avenidas cheias de trânsito, de comércio, de altos prédios. O miolo, porém, o trecho em que a estrada era estrada e nada mais, o único caminho a cortar uma região, esse longo pedaço, por assim dizer, expirou, foi entregue ao abandono, a famosa via deixou de existir e quase ninguém notou.

Ele acompanhou tudo e, frente ao inexorável, viu-se obrigado a partir. Experimentou uma cidade, depois outra, tentou novas estradas e não se sentiu bem em nenhum lugar, nada viu que o contentasse, nada viu que quisesse. Inclusive tentou empregos que antes nunca exercera, tentou até mesmo roubar e mendigar. Nada resolveu. Voltou para onde sabia viver, mesmo sem haver mais vida lá.

Na volta vinha velho, trazia como prêmio uma magra pensão da previdência oficial, bastante, entretanto, para seu parco sustento. Gastava os dias vagueando por seu extenso lar, dormia sob ruínas, todas velhas conhecidas dele — que também já não era mais que ruína, — juntava sucatas, cuidava daquelas cruzes que marcavam os pontos dos desastres fatídicos. Não que ele tivesse qualquer contato com espíritos, simplesmente gostava de servir aos usuários da rodovia. Desagradava-lhe imaginá-los tristes, os mortos, em virtude de não terem quem deles se lembrasse, como um dia decerto aconteceria consigo próprio, que já era fantasma naquele asfalto, só com a diferença de ainda habitar um corpo que, sabia, não demoraria muito a desocupar. Quanto à estrada, não tinha tanta certeza de que a morte o fizesse abandoná-la.

O mais de suas horas ele as consumia sentando-se em locais elevados do percurso — pontos dos quais a vista era só amplidão, — onde buscava recompor-se do cansaço que a espera e a ignorância e o aturdimento lhe traziam; o engraçado é que ficava assim não porque não gostasse ou não concordasse com a reintegração operada pela natureza, pois dela aprendera o valor do silêncio e do calmo evolver, o que não lhe apagava a convicção de ali não residir seu espírito, porquanto remanescente de domínios dos quais talvez fosse o último traço sem ser pedra nem caminho, só zelador.

21.1.98

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